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Um encontro espiritual

— Nossa, esse cheiro de mato está me deixando enjoada.
— Então fecha a janela!
— Eu abri para ver se o vento compensa a sua lerdeza em subir a serra!
— Se eu correr te garanto que vai ser pior; são muitas curvas.
— São? Tinha percebido não…
— Pare de deboche e aproveite a vista. Olhe que beleza! Estamos contemplando a serra dos Órgãos!
— Pois é, faz sentido. Quando sairmos dela provavelmente eu botarei a metade dos meus para fora.
— Dos seus?
— Sim, meus órgãos. Deve ser por isso que se chama assim. As pessoas não aguentam tanta curva e deixam pelo caminho boa parte dos seus órgãos.
— Ah, não seja dramática. Além do mais, a serra não tem esse nome em homenagem aos órgãos que compõem o corpo humano. Observe ao longe os picos das montanhas. Parecem tubos dos órgãos de igreja. Por isso o nome.
— Isso é piada? Se a intenção é e me distrair está funcionando. Isso pode parecer tudo, menos com um órgão de igreja. Humf! Só o que me faltava.

E a viagem seguiu com o casal sinuosamente na direção do Spa Solar das Maritacas. A muito contragosto Pedro concordou em passar o fim de semana dedicado a um “detox da alma”, foi como Monique referiu-se ao evento. Há tempos ela queria levar seu marido àquele Spa na esperança de que ele encontrasse um jeito melhor de se alimentar e absorvesse as boas energias do local.

— Graças a Deus acabou a serra das tripas! — Monique disparou com um contido sorriso debochado.
— Agora veja se acelera porque não quero chegar atrasada para a palestra de abertura! — arrematou.
— Palestra de abertura? Que diabo é isso? Nós estamos indo para um daqueles congressos seus de psicologia que ficam falando por horas sobre o mesmo assunto? Eu tô fora! Não quero participar de palestra nenhuma.
— Pedro, não começa! Combinamos que você iria se esforçar para ser participativo.
— E eu deixei bem claro minhas condições: a) não tomar o tal chá com monte de planta; b) não fazer aula de dança; c) não fazer aula de desenhar mandala e d) meditações e afins.

Próximos de chegar ao destino, o clima azedou entre o casal. Mas Monique, enchendo-se de paciência, com a fala pausada, pouco a pouco foi vencendo o pragmatismo do marido. Na chegada, Pedro já admitia a participação na palestra de abertura, mantendo obviamente todas as outras condições previamente combinadas.

O ambiente em Nova Friburgo estava próximo aos vinte graus. Nem frio e nem quente. Perfeito para ambos. Dentro da linha de discordâncias que entrelaçavam Pedro, um homem de exatas e Monique, uma mulher de humanas, a temperatura era um dos pontos de convergência entre o casal.

Na chegada, um portão de ferro, cor de chumbo, levemente enferrujado, totalmente vazado e decorado com pontas de lanças, abriu-se depois que Pedro se identificou pelo interfone castigado pela ação do tempo.

O caminho de terra batida, delimitada por um gramado bem aparado, apresentava duas alternativas de subidas, uma paralela a outra. Porém, a que indicava a direção da recepção era bem sinalizada com placa de madeira. No trajeto, um casal de ema de olhares desconfiados escoltou os recém-chegados até a metade do caminho.

A atmosfera, de fato, correspondia a tudo que foi caracterizado por Monique. Uma área arborizada de acomodação rústica combinava com a proposta de um lugar que lhe entregava uma experiência voltada para saúde interna e externa.

Logo na entrada, uma moça sorridente e de olhos puxados oferecia de bandeja, literalmente, o tal chá da lista negativa de Pedro. Uma outra moça, a gerente do local, aproximou-se deles e liberou o casal para fazer o check-in depois, já que a palestra de abertura estava para começar.

A grande maioria dos presentes, Pedro poderia afirmar sem medo de errar que cerca de 99% deles, ansiava por aquela palestra de abertura. Não era para menos. Afinal, o Spa estava recebendo um líder espiritual que vinha tendo presença destacada especialmente em eventos daquela natureza. Aliás, não por acaso a lotação era máxima e a gerência do Spa teve que driblar os descontentes que não conseguiram fazer sua reserva.

Muito antes de aceitar acompanhar Monique, Pedro ouviu atentamente a explanação da esposa sobre o que ele iria encontrar. Sua preocupação era que o marido absorvesse a mensagem e deixasse o ceticismo de lado –- como se isso fosse possível, na velocidade que ela pretendia. No entanto, surpreendentemente, Pedro aceitou bem a explicação sobre aquele universo, a função do líder espiritual e especialmente em relação aos espíritos:
Yer su – espíritos da água e da terra que vivem em uma determinada montanha, lago, rio, rocha, árvore etc.; Chotgors – responsáveis por doenças físicas e psicológicas;
Otsoors – almas sulcadas de ancestrais que vivem na natureza;
Ongons – espíritos ancestrais que agora vivem em um lugar ou casa designada especialmente para eles. Eles também podem viver em figuras esculpidas em madeira ou simplesmente em joias (amuletos da sorte); e
Burkhans – muito poderosos e perigosos, que são difíceis de controlar.

A palestra ficava na parte de cima e era necessário pegar a escada de alvenaria e degraus estreitos, próxima à recepção. A cada passo, o casal percebia um som marcado como se fosse um surdo em marcha fúnebre. Todos estavam sentados no chão de sinteco parquet paulista, lado a lado, em formato de uma grande ferradura e em frente a uma flamejante e intensa lareira, que se contrapunha à escuridão em que o salão estava entregue. Uma espécie de lamento em forma de canto vinha do fundo da sala. As palavras eram incompreensíveis, mas a melodia não. Claramente tratava-se de um canto indígena. Notava-se uma emoção forte contagiando cada pessoa ali presente.

Direcionando seus passos para o único lugar vago na “grande ferradura”, bem no meio, Monique – sentindo uma sucessão de arrepios – e Pedro sentaram-se confortavelmente. Uma mulher jovem, usando um poncho de cores predominantemente vermelha e azul, sobrepôs sua voz ao instrumento e ao canto, que nesse instante diminuiu o volume. Ela deu as boas-vindas.

Enquanto falava, às suas costas, surgiu um homem, de um metro e oitenta de altura, com vestes brancas esvoaçantes e uma dezena de colares coloridos, sustentando um vistoso cocar. O surdo bateu mais alto e o canto ficou mais intenso. Fazia parte da enunciação. O sujeito andou lentamente como se estivesse levitando e parou em frente à lareira. A imagem, cujas chamas do fogo por de trás causou um efeito ainda mais impactante, tinha um olhar tenro que vazia questão de encontrar os olhos de cada participante que integrava a “grande ferradura”.

Monique estava em uma espécie de transe e nada ao seu redor seria capaz de distrai-la. Pedro olhava fixo para o homem do cocar, estupefato. Havia no marido uma expressão de incredulidade.

À medida que o sujeito caminhava, Pedro, com o cotovelo, reclamava a atenção da esposa, que se mantinha compenetrada.

Uma comoção tomou conta do local. A cada olhar do xamã uma descarga de emoção acontecia. Pedro não se conteve em somente cutucar Monique. Vendo que ela não correspondia, passou a espichar o pescoço e sussurrar no seu ouvido, seguidamente. A sequência de cumprimentos entre o líder espiritual e cada um dos presentes seguiu na velocidade que o ato em si pedia, ou seja, ainda que ele fizesse sempre uma pausa sorrindo com os olhos não havia razão para delongas. Logo seria a vez de Pedro ter o encontro esperado. Monique, aparentemente retornando do transe, mesmo estando depois do marido, ficou eufórica como se fosse a vez dela.

Como fez com cada um dos participantes, o xamã aproximou-se sem chegar muito perto, mas a uma distância que se permitia notar bem o seu rosto. Desde que o “ritual” começou Pedro mostrava uma inquietude incomum, uma excitação diferente dos seus confrades. Nem parecia aquela pessoa cética que um dia teve que ser convencido para estar naquele lugar. Finalmente chegou a vez de Pedro e seus olhos lançaram-se firmes na direção do xamã. Ao encontrar os olhos do Pedro o rosto do sujeito reteve-se. O sorriso de antes deu lugar a uma expressão de surpresa. O olhar reto, cheio de energia e distribuindo confiança, ficou de lado. Enquanto Pedro sorria, o líder espiritual imprimiu um ritmo acelerado e deu continuidade aos cumprimentos. Mal saudou Monique e o restante dos participantes e saiu em disparada, olhando de soslaio na direção de Pedro.

Era para o xamã, após os cumprimentos, fazer a tão esperada palestra. Porém, o sujeito cochichou algo no ouvido da sua assistente e saiu apressado do local. Em meio às desculpas pela saída do líder espiritual, Monique se mostrou incomodada com os risos de Pedro, que não conseguia se controlar. Quanto mais ela cobrava explicações, mais ele ria.

— Monique, aquele sujeito do cocar é o Toninho que frequentava o antigo bar do Veloso, agora Garota de Ipanema. Não mudou nada. Vivia enchendo a cara e dando trambique nos outros — explicou Pedro, ainda tentando conter os risos, diante da esposa visivelmente decepcionada.

– Aliás, mudou sim. Suas roupas agora são mais chamativas – arrematou o marido explodindo em gargalhadas.

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